Negros evangélicos debatem racismo e discriminação nas igrejas
"São 15 milhões de pessoas pretas de cabeça baixa nas igrejas, achando que são descendentes do continente do demônio", afirmou o teólogo Walter Passos, no I Encontro Nacional de Negras e Negros Cristãos, realizado em Salvador no mês de abril. A iniciativa foi do Conselho Nacional de Negras e Negros Cristãos (CNNC), organização que vem debatendo a questão racial em diversas igrejas evangélicas em todo o país há cerca de um ano. Passos preside o CNNC, que é composto por fiéis de igrejas como a Presbiteriana, Batista, Adventista, Assembléia de Deus e a Metodista tendo a participação, até então, de estados como Rio de Janeiro, Alagoas, Minas Gerais, Espírito Santo, Paraná, São Paulo e Bahia. Criado a partir de debates e discussões por e-mails, o Conselho hoje vem promovendo encontros regionais, levantando o tema entre jovens e adultos negros - homens e mulheres evangélicas pelo país. Em entrevista, o presidente do CNNC falou ao Ìrohìn sobre este debate. Confira.
Jamile Menezes Santos, Estudante de Jornalismo da Faculdade da Cidade do Salvador
jamyllem@hotmail.com
Ìrohìn - São 15 milhões de evangélicos negros no Brasil. O que pensa este contingente hoje quanto às suas identidades negras?
Walter Passos - Os evangélicos são os que têm um processo de negação maior quanto ao seu pertencimento à comunidade negra. A pobreza e a desorganização, além da falta de políticas públicas, fazem com que nosso povo procure o mínimo de bens materiais através dos sacrifícios (ofertas), negando seu próprio ser. A discriminação em nenhum momento é questionada e nas igrejas históricas, o racionalismo branco é imitado. Em todas as três correntes do protestantismo no Brasil, a máscara branca está desfigurando a essência dos pretos e pretas e esse fato é um anti-evangelho de Yeshua (Jesus), que foi o mais importante preto da história da humanidade.
Ìrohìn - De que forma isso é visto nas igrejas?
Walter Passos - No comportamento dos (as) pastores (as), por exemplo, que se explica na formação teológica: as faculdades e seminários são formadores de teologias excludentes, baseadas no medo e na negação das raízes africanas. Os sermões, que seriam o grande alimento das comunidades, se tornaram mecanismos de dominação através da palavra e demonização das culturas africanas. Há um processo de branqueamento escandaloso nas lideranças pastorais negras. O mais difícil de encontrar é pastores pretos casados com mulheres pretas, porque o padrão de beleza europeu é propagado dentro das comunidades. Tudo que é belo é branco e tudo que é demoníaco é preto, por exemplo. A direção das igrejas não está com as lideranças pretas. Na Bahia, qual o pastor preto consciente que pastoreia uma grande igreja? Se somos 15 milhões, deveria haver pelo menos 650 mil pastores (as) pretos. Acontece que para estudar teologia é necessário ter condições financeiras e nosso povo não possui essas condições.
Ìrohìn - O Encontro Nacional, realizado em abril, reuniu expressivas delegações de diversos estados. Existem singularidades quanto ao engajamento por região?
Walter Passos - As diferenças são evidentes. O estado da Bahia é o que sofre a maior discriminação, tendo também a maior organização de juventude afrocentrada e atuante. A Bahia é um imenso paradoxo, porque somos a maioria da população preta que guardamos grandes ensinamentos ancestrais e o estado onde há menos políticas públicas de combate à discriminação.
Ìrohìn - Qual o papel dessa juventude?
Walter Passos - A juventude afrocentrada do CNNC é a espinha dorsal da organização, como está sendo em todo o Movimento Negro Brasileiro. A diretoria do CNNC Bahia é composta de 100% de jovens, sendo um marco na nossa organização no Brasil. Os jovens não aceitam as mazelas que as igrejas têm feito com nosso povo e são os grandes questionadores, não sentindo tanto temor das lideranças das igrejas como os idosos e adultos.
Ìrohìn – E o que é que o CNNC traz para o debate junto a esse público?
Walter Passos - A nossa luta se dá dentro do cristianismo, que participou ativamente da formação ideológica do Brasil: legitimou, abençoou, traficou, explorou e enriqueceu com tráfico dos nossos ancestrais, mantendo ainda uma violenta discriminação em todas as igrejas, seja a católica ou a protestante. Sendo assim, debatemos a discriminação racial e a sua superação dentro das igrejas cristãs, a luta como entidade preta cristã contra todos os tipos de exploração na sociedade, a organização do povo preto cristão, a propagação e a prática do pan-africanismo, a formulação de uma teologia preta e a questão de gênero, pois sabemos que a mulher preta é a mais discriminada dentro do cristianismo, além de outros temas. Trocamos informações, literaturas, realizamos encontros e aprendemos a ouvir os especialistas negros, porque sabemos que não podemos confiar nos teólogos (as) brancos e seu academicismo, o que é ideológico e visa manter a dominação e escravização mental do povo preto.
Ìrohìn - Um ponto central nesta discussão, para vocês, é a Escola Bíblica Dominical (EBDs). Por que é importante questionar essa Escola?
Walter Passos - A escola bíblica dominical dentro das igrejas históricas e pentecostais tem uma função de grande importância que é a formação do membro da igreja. A EBD é uma escola com objetivo de branqueamento, pois leva as pessoas negras, desde pequenas, à negação de suas origens. Ela reforça os preconceitos, acaba com sua auto-estima. Reforça o machismo, ensina um Deus branco baseado no medo, cópia do senhor de engenho. É necessária uma reformulação das EBDs, mas, nessa estrutura de igrejas que existe, é muito difícil.
Ìrohìn - Por que então não fundar uma outra Igreja, criar uma outra Bíblia?
Walter Passos - A função do CNNC não é formar uma nova denominação evangélica, mas, atuar dentro das igrejas de forma contundente. Queremos fundar a Comunidade Cristã Pan-Africanista, onde poderão atuar livremente e louvar a Yeshua conforme a sua africanidade. O CNNC não é uma igreja, mas uma organização pan-africanista. O cristianismo que temos hoje no planeta, e inclusive em várias regiões da África, é um cristianismo caucasiano deturpado. Os teólogos brancos, com mestrados e doutorados, conhecem a verdade e não ensinam. Há interesse ideológico em se manter um povo dominado. Estamos escrevendo o livro Cristianismo de Matriz Africana, objetivando informar o nosso povo preto dessas verdades escondidas.
Ìrohìn - Como é a reação dos (as) negros (as) evangélicos (as) ao serem chamados para este debate em suas igrejas? Há reações mais ou menos adversas em alguma delas?
Walter Passos - As reações são as mais diversas possíveis, porque a catequese católica e a forma de evangelização que sofreram os nossos ancestrais foram violentas e hoje a violência é ideológica. Os negros cristãos no Brasil estão com os olhos vendados e temem o inferno ensinado pelos brancos. Tenho conversado com pastores de diversas denominações e lideranças que sabem da discriminação racial e ficam calados, sendo co-participantes e alimentadores das mentiras. Por isso o CNNC não acredita e não participa do chamado Movimento Negro Evangélico (MNE) porque é um movimento que se apóia em organizações e lideranças brancas. Outro fator importante é que a luta pela emancipação do povo preto tem que ter a base familiar, e ainda não vi a maioria masculina dessas lideranças do MNE levar suas famílias para as reuniões. Será porque as suas mulheres são brancas e eles têm vergonha de suas companheiras? Como podem liderar e falar da discriminação racial se a própria família não é participante? Acreditamos que os pretos têm que trilhar os seus próprios caminhos e ditar as regras de sua própria emancipação.
Ìrohìn - Há a participação da Igreja Universal do Reino de Deus no CNNC?
Walter Passos - A questão da IURD (Igreja Universal do Reino de Deus) é bem interessante. No censo do ano 2000, possuía 2.101.887 membros, possuindo um poder imenso de comunicação. A IURD tem como chamamento a idéia da maldição hereditária. Hoje os negros lá se sentem amaldiçoados, todos os seus problemas são resultantes do chamado encosto que vem acompanhando a família desde a África. Sendo assim, se toma “fácil” nessas igrejas a comunidade negra enfrentar os graves problemas sociais que a afligem. A presença crescente de descendentes de africanos nessas igrejas é conseqüência da constante expulsão que sofrem nas igrejas históricas, na conversão forçada ao catolicismo, na falta de reação das religiões de matriz africana e seus paralelismos e sincretismo. São colocados fora dos muros do bem- estar social e as fronteiras sociais se manifestam também religiosamente. A realidade dos pretos nestas igrejas é de extrema preocupação: explorados financeiramente e crendo numa falsa libertação, vivenciam um processo de alienação de seus problemas. Odeiam sua própria cultura, rejeitam sua história e permitem que a memória de seus ancestrais seja ultrajada, recebendo o rótulo de “demoníaca”.
Ìrohìn - E quanto aos adeptos do Candomblé?
Walter Passos - A liberdade religiosa tem que ser defendida. O que notamos é que algumas pessoas querem falar pela religião do candomblé e repetem a prática branca de falta de respeito com os negros. Antes de sermos religiosos, somos pretos. Posso mudar de religião, de opção sexual e de ideologia. Só não posso deixar de ser preto-africano no Brasil.
Ìrohìn - De que maneira o CNNC atua frente à intolerância religiosa de setores evangélicos contra as demais crenças de origem africana?
Walter Passos - A nossa organização é contrária aos ataques perpetrados pelas igrejas evangélicas às crenças dos nossos antepassados e de nossos irmãos. Todas as igrejas evangélicas são desrespeitosas com as crenças de matriz africana. Há vozes proféticas em diversas denominações, mas a prática é de extrema violência e falta de respeito. Os pretos evangélicos não são os culpados pela falta de respeito, muitos são repetidores dos ensinamentos deformados das igrejas.
Ìrohìn - Pan – Africanismo e Religiosidade. Qual a relação e de que forma o CNNC vem integrando ambos os temas pelo Brasil?
Walter Passos - O Pan-Africanismo é a saída para a união do povo preto nessa diáspora forçada. Quando o CNNC se coloca como uma organização pan-africanista é para desmistificar a idéia pregada de ecumenismo das igrejas protestantes, baseado em palavras que mantêm nosso povo afastado de suas decisões “ecumênicas”. O Ecumenismo é a grande mentira das igrejas brancas. Temos que ter uma preocupação com o nosso povo e essa preocupação é um ato de espiritualidade e prática. Lutamos por uma organização de autogestão e o CNNC, com seu teor pan-africanista, acredita que o próprio povo tem que se libertar da segunda escravidão que o levou à inércia em relação aos seus próprios problemas.
Ìrohìn – Quais os principais resultados do Encontro Nacional?
WP - O Encontro Nacional foi uma grande vitória do povo preto, independente de religião, mostrando que podemos ter um objetivo de liberdade. As mulheres e homens pretos só podem louvar em comunhão quando aquelas e aqueles que se dizem irmanados na mesma fé de Yeshua reconhecerem que o racismo, antes de ser ontológico, é moral. Que temos o direito de desenvolver os nossos destinos através da nossa identidade africana, representado a nossa corporalidade através da nossa ancestralidade. Enquanto isso não ocorrer e houver a exploração da comunidade branca sobre o nosso povo, a comunhão não existe, porque estaremos mentindo para nós mesmos, enganando nossos jovens e alienando nossas crianças. Não há comunhão sem a real vivência do evangelho de justiça de Yeshua.
Conheça mais sobre o CNNC em www.negroscristaos.com.br .
http://www.irohin.org.br/imp/template.php?edition=20&id=96
quinta-feira, 15 de novembro de 2007
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